Para quem legislam, os nossos Legisladores?

por Enézio de Deus

A via atualmente mais eficaz para o reconhecimento dos direitos dos homossexuais, no Brasil, tem sido a judicial, mesmo diante do conservadorismo de parte considerável da magistratura, do Poder Judiciário. Se, por um lado, preocupa o silêncio do Poder Executivo e a sua falta de coragem para com a efetivação de políticas público-governamentais de combate ao preconceito com base na orientação sexual dos cidadãos, mais assustador, ainda, é o descompromisso do Poder Legislativo - no âmbito federal - para com as chamadas minorias sexuais.

A urgência de os magistrados realizarem uma interpretação justa, humana e socialmente útil das leis, capaz de reconhecer os direitos emergentes das uniões entre homossexuais e de lhes possibilitar o acesso à justiça, compreende-se e justifica-se, dentre outras razões, pela omissão do Poder Legislativo e, em espacial, do Congresso Nacional, que, até o momento, não contribuiu para afirmar a dignidade e o respeito efetivo a milhões de cidadãos brasileiros vitimados pelo preconceito e, outrossim, pela homofobia (sentimento de aversão à orientação homoessencial, que se constata socialmente).

O estágio atual do conhecimento humano impossibilita juízos discriminatórios e omissões estatais, com base na orientação sexual das pessoas. No Brasil, país marcado pela exclusão social, todos sabem da necessidade de o Poder Legislativo aprovar Projetos de Lei referentes às questões sócio-econômicas de amplitude relevante (distribuição de renda, por exemplo), visando a atenuar "a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3 o , III, CF). Mas o fundamento da atuação legislativa, para com essas problemáticas que demandam atuação especial (concentração da riqueza e exclusão social) não pode servir de pretexto, para segregar, do amparo legal, situações diversas que marginalizam cidadãos idênticos, em dignidade e em direitos, a todos os outros - como os homossexuais.

Até o momento, a discriminação por omissão, percebida na esfera do Congresso Nacional (quando aos direitos decorrentes das uniões homossexuais e da própria homossexualidade) assenta-se em concepções que jamais poderiam interferir na atividade de representantes legítimos da sociedade, pois são insustentáveis do ponto de vista científico. Os argumentos das citadas bancadas católicas e evangélicas, por exemplo, refletindo interpretações ou posicionamentos ideológicos, doutrinários, subjetivos e culturais delimitados, não devem se sustentar como óbice à aprovação de projetos que, por exemplo, equiparem, para fins diversos, os efeitos jurídicos das uniões homossexuais aos das relações heterossexuais. O que fundamenta tais projetos não são doutrinas (ou questões de fé), mas a cidadania e a dignidade de pessoas e de famílias excluídas do ordenamento positivo, por conta de um traço fundamental, que não mais pode ser alvo de discriminação: a orientação afetivo-sexual. Se essa, voltando-se para o mesmo sexo, fere dogmas ou a forma particular de interpretação bíblica desta e daquela igreja ou doutrina, o Estado não tem a ver com isso, devendo tratar e conceber os seus cidadãos, como "iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (art. 5 o , caput ). Caso contrário, abre mão da racionalidade (prova científica) e afronta princípios constitucionais elementares, admitindo influências de ordem normativo-ideológico-religiosa. O silêncio estatal, além de perverso, é desvio de compromisso (para com os direitos humanos), por omissão, que rompe o pacto social erigido com a Lei Maior de 1988, pois deixa sem reconhecimento e regulação efetiva o atributo fundamental à livre afetividade (e, pois, à constituição familiar e ao exercício da maternidade/paternidade) de milhões de homossexuais brasileiros. Como afirma o Prof. Dr. Paulo Bezerra, na obra “Acesso á Justiça” (Ed. Renovar), sendo “possível produzir leis direcionadas a beneficiar alguns poucos, por que não fazê-las para beneficiar a maioria? Se essa possibilidade se dá ao legislador, então que se produzam leis mais justas".

O acesso à justiça, para além do aparelho judiciário (do processo e da atividade jurisdicional) encontra na produção/omissão legislativa o maior obstáculo e a nascente impeditiva do exercício pleno da cidadania, por parte das chamadas minorias sexuais. Sem dúvida, o direito constitucional a uma ordem jurídico-social justa só se estenderá aos homossexuais (enquanto categoria hipossuficiente, frente ao preconceito e à intolerância), quando os membros do legislativo compreenderem a incoerência ético-profissional de atuarem motivados ou influenciados por preconceitos ou por dogmatismos engessados. Realmente, o dever de quem legisla ou assume função no Poder Legislativo é produzir leis para o devido amparo a todos os cidadãos, sem discriminações injustificadas. Afinal, podemos nos questionar o que poderá ocorrer, no Brasil, com a crescente fragmentação do Congresso em bancadas e com o crescimento dos movimentos pentecostais e fundamentalistas... Os subgrupos se unem para legislar para “os seus”... E os demais cidadãos, que são “iguais perante a lei” em direitos e obrigações, onde ficam? Certamente, no lugar onde se encontram os homossexuais frente ao Estado: bem vulneráveis e desamparados, como se não existissem! Então, é válida outra indagação, parafraseando o poeta: “que país é este?”

É lamentável perceber que nenhum dos Projetos - verdadeiras ações de cunho reparatório-afirmativo -, por ora existentes no Congresso Nacional, que poderiam beneficiar os homossexuais, foi aprovado e, pois, transformado em lei. A deputada Iara Bernardi (PT-SP), autora dos Projetos de Lei ns. 5/03 e 9/03 - que visam, respectivamente, a incluir, no Código Penal, a punição por discriminação ou preconceito de orientação sexual e, na lei de Execuções Penais, a permissão de visitas íntimas a presos homossexuais - confirma, por exemplo, que a Câmara se omite em relação à violência contra homossexuais no Brasil. Como ela mesma afirma, “precisamos de legislação específica de criminalização, de orientação, nas escolas, para as crianças. A omissão desta Casa leva o Poder Judiciário a (...) reconhecer ações que o Congresso Nacional deveria estar debatendo e transformando em lei". Há outros projetos relevantíssimos, como ode número 287/03 (da Deputada Laura Carneiro, PFL-R, que criminaliza a rejeição de doadores de sangue, por serem homossexuais) o de nº. 32/03 (da Deputada Maria do Rosário, PT-RS, que proíbe a diferenciação salarial, por motivo de orientação sexual); o de nº. 2252/96 (da então Deputada Marta Suplicy, PT-SP, que tipifica como crime a discriminação em entradas de elevadores e prédios, em razão da orientação sexual) e o de nº. 379/03 (da Deputada Laura Carneiro, PFL-RJ, que institui o dia 28 de junho como Nacional do Orgulho Gay e da Consciência Homossexual).


Vale, entretanto, uma ressalva específica sobre os projetos de nºs. 1.151/95 (de autoria da então deputada Marta Suplicy, PT-SP, de relatoria atual do Deputado Roberto Jefferson, PTB-RJ) e 5.252/01 (desse mesmo deputado, que cria e disciplina o Pacto de Solidariedade). O primeiro, Projeto 1.151/95, que disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências, não propõe status de casamento ao contrato de Parceria Civil Registrada; não assegura o uso do sobrenome do outro; impede a mudança do estado civil, durante a vigência do liame contratual e veda a adoção, tutela ou guarda de crianças em conjunto (mesmo que filhos de um dos parceiros). Em que pesem as fundamentações críticas sobre essas limitações, a transformação do substitutivo do projeto em lei federal significaria um avanço significativo, beneficiando, indiretamente, os casais homossexuais, que registrassem suas uniões. O texto original fora adaptado para haver maiores chances de aprovação - como a troca da expressão "união civil", para a "parceria civil", a fim de essa não ser confundida com o instituto da união estável (já que essa, para os legalistas, só se aplica à relação de pessoas de sexo diverso). Desde 10 de dezembro de 1995, quando o substitutivo do Deputado Roberto Jefferson foi aprovado, a votação em plenário vem sendo adiada nos trâmites políticos federais - até o momento, devido, dentre outros fatores, às pressões das bancadas religiosas. É de se questionar em até que ponto a influência preconceituosa de tais bancadas impede a votação, ou tal óbice é fruto, na verdade, da falta de compromisso efetivo e de vontade política de grande parte dos parlamentares, para com a situação de desamparo legal dos homossexuais - muitos dos quais os elegera, em contrapartida, esperando uma atuação legiferante isonômico-cidadã, ou seja, para todos, sem distinção. É necessário, pois, que os atraídos afetivamente pelo mesmo sexo escolham melhor os seus representantes políticos, porque, sem que seja vencida tal realidade discriminatória, os homossexuais continuarão a ver negligenciados direitos e garantias constitucionais fundamentais, em virtude de preconceito intolerante, além de correrem o risco de a homofobia se intensificar, partindo das próprias estruturas estatais - das chamadas "casas da democracia", para os outros níveis de poder. Com efeito, estas bases não podem se manter, pois tal violência ao princípio isonômico compromete, ao mesmo tempo, a dignidade humana e a própria legitimidade democrática do ordenamento. Por isso, é evidente e legítima “a possibilidade de se cobrar do legislador que regule as situações que a jurisprudência consolida”, como bem aponta a Des. Maria Berenice Dias.

Elegendo-se um legislativo comprometido com os princípios constitucionais e com a efetividade dos direitos humanos, ele, como produto do Direito, pela função que lhe cabe constitucionalmente, “estando em frente em matéria de visão do justo, será o veículo de justiça mais efetivo e eficiente”, como confirma o já citado Prof. Paulo Berezza.

O Projeto 5.252/01, do Deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), surgiu, como ele próprio afirma, "a partir das discussões promovidas sobre o Projeto Lei n. 1151, de 1995, de autoria da Deputada Marta Suplicy". Além, pois, da relatoria deste já mencionado projeto (que tramita há oito anos no Congresso!), o Deputado Roberto Jefferson elaborou o de no. 5252/01, atenuando o conteúdo e suprimindo expressões que pudessem suscitar preconceitos infundados. O resultado, se a proposta fosse aprovada seria, praticamente, o mesmo e, sob o prisma social e jurídico, contribuiria muito para o avanço no Brasil, na esteira do reconhecimento legal de uniões que ora estão desamparadas pelo Estado, sob o prisma do Direito Positivo Pátrio - como a união homossexual. Assegura, tal projeto, "a duas pessoas, o estabelecimento do pacto de solidariedade, visando à proteção dos direitos à propriedade, à sucessão e aos demais direitos" (art. 1 o ) nele regulados. Também, constitui-se "mediante registro em livro próprio, nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais" (art. 2 o ), vedando "quaisquer disposições sobre adoção, tutela ou guarda de crianças ou adolescentes em conjunto, mesmo que seja filho de um dos pactuantes" (art. 3 o , § 2 o ). A diferença mais relevante, com relação ao Projeto 1.151/95, reside, ainda segundo Jefferson, em que “a proposta busca retirar, totalmente, de discussão, a questão da sexualidade, abolindo a expressão 'pessoas de mesmo sexo', que dava, à proposta anterior, o enfoque da proteção das relações homossexuais a que se constitui o maior obstáculo para sua aprovação, sem, entretanto, impedir que estas pessoas, busquem a proteção no texto atual”.

Em que pesem os preconceitos evidenciados nas decisões de muitos magistrados, a atividade jurisprudencial tem sido o instrumento de justiça mais eficiente, ainda que tênue, em matéria de direitos emergentes das uniões homossexuais e contra a discriminação com base na orientação sexual. Devido à proibição de os juízes se eximirem de julgar (de despachar ou sentenciar), alegando lacuna ou obscuridade na lei - art. 4 o , LICC e art. 126, caput , CPC -, e ante o princípio da inafastabilidade, segundo o qual todos as lesões ou ameaças a direitos devem ser submetidos à apreciação do Poder Judiciário - art. 5 o , XXXV, CF -, compreende-se a postura não omissiva desse (ao contrário da atuação de muitos membros do Congresso Nacional). Mas a discriminação também está presente nas estruturas do Poder Judiciário. De fato, "a lei não é - nem deve ser - apenas exortação. Se perguntado, qualquer juiz nega que a declaração de direitos e garantias fundamentais seja apenas uma carta de intenções. Mas, na prática, há (e seu nome é legião...) aqueles dispostos a negar efetivação a tais garantias" – como reforça Paulo Bezerra.

O Direito Constitucional de acesso à justiça, bem mais amplo do que o simples aceso ao Poder Judiciário, através do exercício do direito de ação, não será garantido aos homossexuais, enquanto esses não tiverem, outrossim, alcance a um processo justo, que viabilize a aplicação mais sintonizada possível da legislação infraconstitucional com a Constituição Federal, com a realidade fática hodierna e com as suas mutações. Atualizar o sistema jurídico e, em especial, o ordenamento, mediante a conformação da lei com o justo arranjo social é a maior garantia que se pode auferir do labor jurisprudencial, pois dessa conformação depende a viabilização dos demais direitos. Para tanto, o juiz deve se soltar das amarras. Há de recuperar a capacidade de indignação, diante da exclusão social de milhões de cidadãos, diante do preconceito, sob suas diversas matizes.

No que tange à adoção de menores por pares homossexuais, esperar a regulação normativa deste direito subjetivo por ora, das pessoas que convivem em verdadeiras uniões sólidas afetivas, através do Congresso Nacional, significa continuar vendo excluídas crianças e adolescentes de ambientes familiares estáveis e, em particular, dos direitos decorrentes de uma filiação bi-parental (mais plena) e, pois, de uma convivência mais diversa (com dois pais ou duas mães), que, sem dúvida, vêm-lhes ao melhor interesse. Se matérias menos polêmicas - por conta do tempo em que já são debatidas - não foram objetos de aprovação legislativa, mediante promulgação de lei federal, o deferimento do pedido de adoção a casais homossexuais verificar-se-á, primeiro, no âmbito judicial, pois já há abertura e antecedentes suficientes para tanto. Independente, com efeito, de possuírem uma visão dogmático-positivista ou crítico-transformadora, os magistrados não estão presos ao ordenamento literal positivo (enquanto fundamento imediato das suas decisões), pois esse deve ser interpretado, frente às possibilidades dentro do sistema jurídico, com vistas à melhor adequação social ao caso concreto. Pelo primado do realismo jurídico, quando a legislação está em descompasso com a realidade social, deve o juiz interpretá-la de forma a conformá-la com os fatos, dados inegáveis.

Diante da ultrapassada e inconcebível omissão do Poder Legislativo Federal, aberto está o caminho da criação jurisprudencial que, inevitavelmente e de modo gradual, tem ampliado o direito constitucional de acesso a uma ordem jurídica justa, igualitária e, socialmente, útil aos homossexuais que, solteiros ou em convivência afetiva estável, procuram o Poder Judiciário, para que o Estado lhes "diga" o direito. Como esse direito não precisa estar literalmente previsto na norma escrita, a analogia (aplicação de leis semelhantes que regem casos parecidos com os sub judice ) pode conduzir a uma fundamentação racional e equânime, capaz de efetivar direitos e consagrar diversas garantias relevantes a uma vida digna, como a colocação, por exemplo, de crianças e adolescentes, em seios de famílias homoafetivas bi-parentais substitutas, através do instituto de adoção – defesa principal do meu livro sobre o tema, publicado pela Editora Juruá.

Para fim de texto e início de ações concretas, é preciso que os homossexuais e os cidadãos comprometidos com uma ordem social justa reflitam quais membros dos Legislativos – municipal, estadual e federal – estão elegendo, para que a semi-aberta ou fechada porta do reconhecimento dos seus direitos não continue segregando e gerando injustiças inconcebíveis... Esperar benefícios somente do Judiciário e do Executivo é postura míope, que compromete o surgimento de leis mais condizentes com o atual estágio da humanidade. Contra a intolerância ou o medo omissivo, que permeia muitas “casas da democracia”, basta a verdade inexorável de que é para o povo, isto é, para todos, indistintamente e independente de qualquer natureza, que os legisladores tem o dever de legislar. No dia que assim se orientar a produção legislativa, haverá mais bem-estar e justiça social, em todas as esferas...

Sobre o autor:

Enézio de Deus é membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM -, Pós-graduando em Direito Público, docente, compositor e autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, Ed. Juruá.

eneziosilva@zipmail.com.br


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Só há digniddae, com respeito à livre afetividade

Por Enézio de Deus

Sabiamente, Jung registrou: “O ser humano é um resultado peculiar de uma experiência da natureza e, especialmente quanto à vida erótica, tudo é possível”. De fato, é perceptível no cotidiano e comprovado por pesquisas – como o famoso relatório do Dr. Alfred Kinsey, norte-americano – que, entre a manifestação heterossexual e a homossexual (presumidamente puras), há uma infinidade de graus comportamentais na seara da sexualidade e da afetividade, que mesclam tendências, gostos pessoais, fantasias e, por exemplo, uma orientação sexual voltada para ambos os sexos em um mesmo sujeito. Existem os que só se satisfazem com o mesmo sexo; outros, com o oposto; os que, periodicamente, alternam relações com homens e com mulheres; há os sexualmente livres, mais trabalhados; os reprimidos, os recalcados em níveis diversos; os pervertidos de toda sorte, etc. Novidade? Nenhuma; mas ainda insistimos em problematizar demais algo tão belo e natural como a sexualidade. Desse modo, apesar dos incontestes avanços da Psicologia e do Direito nesse campo específico, maior parcela da humanidade reluta em não tratar os fenômenos ou assuntos da vida sexual com a clareza e a simplicidade que eles exigem, além de repudiar - violentando direitos fundamentais – os que não se rotulam nos padrões instituídos como “normais” e esperados sócio-culturalmente.

Seguramente, a causa para tanta estigmatização da sexualidade reside nos “pré-conceitos”, verdadeiros lixos sedimentados no inconsciente coletivo no decorrer da história universal. Ressalto, aqui, a influência marcante de maior parte das concepções judaico-cristãs no Mundo Ocidental, por demais vazias e tendenciosas a respeito da sexualidade. Isso me lembra, por exemplo, a máxima do “Crescei e multiplicai-vos” ou a pouco esclarecida história de Sodoma e Gomorra, tão prejudiciais àqueles que se sentem atraídos pelo mesmo sexo. Na realidade, o que nos falta é senso crítico, visão integrativa e menos hipocrisia. É por, infelizmente, vivermos na sociedade da persona (da máscara, da aparência), que insistiremos em tapar o sol dos nossos desejos com peneiras tão fúteis? Em outras palavras, até quando fingir com o discurso dos padrões sexuais institucionalizados, se os nossos mais íntimos desejos, fantasias infindáveis, mantêm-se geralmente distantes daqueles padrões e se o nosso semelhante, que tanto censura, é no fundo idêntico a nós? Bem ensinou Cristo: “Quem não tiver pecado atire a primeira pedra”. Transpondo para a presente análise, entendamos o “pecado” como aqueles ardentes pensamentos e ações que movimentam as labaredas da libido gostosamente, que, por hipocrisia, condenamos no outro, mas permeiam a nossa vivência diária na rua, no carro, no elevador, debaixo ou sobre os lençóis...

Certamente, se tivéssemos acesso a uma educação plena para a sexualidade, pautada somente em princípios éticos, ser-nos-ia mais fácil exercitá-la sem tantos medos e culpas (os verdadeiros pecados desnecessários), como, também, centrar-nos-íamos nas nossas questões, ao invés de nos deixarmos contaminar pela febre cultural do incômodo com a sexualidade e a vida íntima alheias. De fato, quem mais se incomoda com os prazeres e desprazeres sexuais dos outros é que, efetivamente, encontra-se mal resolvido, pelo fato de não ter conseguido ou nem tentando trabalhar as suas emoções efetivo-sexuais conflitantes, pendentes. Instituições religiosas, como a Igreja Católica, por exemplo, que se arvoram a falar de dignidade e direitos humanos, têm sido as que mais sutilmente depreciam a essência dos que não se encaixam no modelo da “sagrada família” – com par de sexos diferentes (presumidamente heterossexual) e indissolúvel. Como promover a paz, sem o devido respeito aos bens essenciais a uma vida digna?

Estando em posição de destaque entre tais bens, a livre afetividade representa natural extensão da essência desejante e, por tal razão, é tutelada, implícita ou explicitamente, por quase todos os ordenamentos jurídicos, tratados e convenções internacionais. Mesmo que a expressão “orientação sexual” não esteja mencionada, literalmente, em lei (como não consta na Constituição Brasileira de 1988), pouca interpretação ou hermenêutica é necessária, para se concluir que ela integra os chamados direitos fundamentais. Basta a inexorável verdade que, sem exercitá-la ou tolhido na movimentação do natural direcionamento dos seus desejos (sejam para o mesmo, para ambos ou para o oposto sexo), o ser humano resta fragmentado, violentado ou sobrevivendo até com dificuldade. Neste sentido, não há que se falar em respeito à dignidade humana, sem o devido e correspondente respeito à livre afetividade! Pensando em contribuir, jurídica e cientificamente, para a maior desvinculação da homossexualidade dos aspectos somente sexuais e genitais dessa orientação sexual, foi que eu tive a felicidade de cunhar, na língua portuguesa (através do devido registro e da publicação do meu livro pela Editora Juruá), o vocábulo homoessência e suas variantes - homoessencial, homoessencialidade -, na medida em que, sendo expressão da essência emocional-desejante de milhões de seres humanos e parte da dignidade desses (núcleo de proteção jurídica mais especial e essencial), a atração pelo mesmo sexo é tão afetivamente natural e verdadeira, quanto as demais aproximações que tem o amor como fundamento e tônica de sustentação.

É evidente a necessidade do auto-aprimoramento constante e de uma reflexão profunda a respeito dos paradigmas – a exemplo de alguns preceitos, dogmas religiosos ou posturas fundamentalistas –, que persistem no bloqueio ao lento processo de libertação da sexualidade humana. Até que essa seja efetivada, que sejamos mais honestos e corajosos para enxergar o que não queremos e para mobilizar forças rumo ao equilíbrio afetivo-sexual de todos, sem distinção, o que, sem dúvida, acarretará benefícios em outros âmbitos da vida. Se o nosso Estado é Democrático de Direito (art. 1º, CF/88) e se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária é um dos primordiais objetivos da República Federativa Brasileira (art. 3º, CF/88), não podemos abir mão do caráter laico das nossas instituições estatais e democráticas. Esta será a maior segurança dos que se sentem vitimados por preconceitos, que jamais poderiam partir de estruturas fundamentais, como o Poder Legislativo – muitas vezes, influenciado por bancadas, que não querem dar o “direito” a todos, mas somente aos que se submetem ou aderem aos seus preceitos. Por estas e outras constatações absurdas, é que podemos repetir a poética: “Que país é este?”...

Enézio de Deus é autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, Editora Juruá; membro do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família; bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); pós-graduando em Direito Público pela Universidade Salvador (UNIFACS); compositor. eneziosilva@zipmail.com.br


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Adoção por Casais Homossexuais

Por Enézio de Deus

O tema voltou à baila com a novela global Senhora do Destino (personagens Heleonora, Jenifer e Renato). Por uma coincidência, meu livro - considerado pioneiro na abordagem - saiu da Editora Juruá no momento em que a sociedade reflete o que a mídia apresenta. Novidade da TV? Nenhuma, de vez que deferimentos de adoções a homossexuais solteiros já são corriqueiros nas Varas da Infância e da Juventude. A temática da possibilidade da adoção pelo casal homossexual, entretanto, nova, instigante e que defendo em minha obra, tornar-se-á, em breve, um dos debates mais calorosos, nos âmbitos do Direito da Criança e do Adolescente e do Direito de Família, vislumbrados constitucionalmente. Se, com efeito, não há precedente jurisprudencial no Brasil deferindo adoção de menor, a dois homossexuais que se amam (e que, por isso, convivem juntos), já há inúmeras decisões apontando para uma abertura que não tardará a fazer inteira justiça, com relação à realidade hipócrita que tem permeado, de há muito, os Juizados da Infância e da Juventude: quando um casal homoafetivo preenche os traços modernamente reconhecidos pelos familiaristas como caracterizadores de uma família e desejam adotar, um deles tem que escolher qual formalizará o vínculo definitivo de paternidade/maternidade com o menor, através do processo de adoção, e os dois acabam educando e criando o ser humano, posteriormente, inserido em seu lar substituto bi-parental (e não pseudo-monoparental).

Pela primeira vez no constitucionalismo pátrio, a Constituição Federal de 1988 rompeu com a noção familiar atrelada somente ao casamento, elevando a família, qualquer que seja ela, a base da sociedade merecedora de plena e especial proteção do Estado (art. 226, caput, CF). Neste sentido, não é o ente estatal, nem o constituinte (e nem tão pouco as igrejas!) que devem dizer o que é família, mas a complexa dinâmica social que tem na aproximação (pela afetividade mútua e ostensiva), a viga-mestra da composição familiar, distinguindo-a das demais interações humanas. Assim, ao lado dos tipos familiares, reconhecidos e exemplificados expressamente nos §§ 1º, 2º (família casamentária), no § 3º (união estável) e no § 4º (família monoparental, independente da orientação sexual dos pais e dos seus descendentes) do artigo 226 da Lei Maior, o Poder Judiciário vem reconhecendo modalidades de família não tuteladas expressamente, mas inclusas na cláusula geral do caput do referido art. 226, como as uniões afetivamente estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Com efeito, não cabe ao aplicador da lei ou ao intérprete restringir onde a norma constitucional não o faz – principalmente sendo a livre constituição familiar um direito fundamental, como extensão da afetividade dos cidadãos. No já aberto caminho jurisprudencial de reconhecimento de efeitos jurídico-familiares às uniões homoafetivas (mesmo na ausência de lei federal que as regulamente no Brasil), clara é a possibilidade jurídica de a analogia com a modalidade familiar da União Estável estender seus reflexos, viabilizando a constituição do vínculo de filiação adotiva entre um menor e dois homossexuais que, por se amarem, formam um ambiente familiar adequado ao normal desenvolvimento de um ser humano. Afinal, a orientação afetivo-sexual de uma pessoa, de per si, não determina possíveis desvios comportamentais, que a inabilite ao exercício da paternidade/maternidade responsável. De igual sorte, compor um lócus familiar equilibrado não é atributo somente de casais heterossexuais; e mais competentes, científica e tecnicamente para avaliar tais questões, do que o próprio juiz da infância e da juventude, são os psicólogos e os assistentes socials, que devem elaborar parecer técnico, opinando sobre a (in)compatibilidade da ambiência familiar estudada, para a boa educação da criança e/ou do adolescente. Infelizmente, muitas varas não contam com o relevante serviço interprofissional, como exige o art. 150 do ECA...

Assim como não é qualquer vinculação heterossexual, que revela a segurança afetiva e a estabilidade suficiente (para o casal se habilitar e lograr o deferimento do pedido de adoção), não é qualquer união homossexual que pode ensejar tal colocação definitiva de menor em seu seio familiar homoafetivo. A responsabilidade do magistrado é extrema, em todos os processos em torno dos quais pairem os interesses dos menores. Além de desaconselhado diferenciar onde o legislador não o faz (como na ampla caracterização de família substituta e de casal no ECA, que não restringe quanto à orientação sexual), é importante sintonizar a prestação jurisdicional com os avanços sociais, para além dos subjetivismos (dos temores injustificados) ou dos preconceitos, que têm determinado o indeferimento, de plano, das petições iniciais formuladas por pares homossexuais, que desejam oferecer uma segurança jurídica maior aos menores e lhes educarem juntos. Qual a impossibilidade jurídica do pedido? Como esta não se sustenta, em uma interpretação do ordenamento submetida à ótica constitucional e aos hodiernos avanços jurisprudenciais na matéria do Direito para com a homoafetividade, o mais sensato é tirar a venda dos olhos e verificar que esta delicada questão exige uma tomada justa de posição – já que o abandono, a marginalidade e o preconceito, que aplacam as minorias (os menores e os homossexuais, p. ex.), não “alisam”, em um país ainda excludente, como o nosso... Contra os que só enxergam a homossexualidade dos candidatos - tendo a homofobia como pano de fundo dos seus argumentos -, basta a inexorável verdade de que é o amor que forma uma família. O que os opositores têm suscitado como solução? A adoção disfarçada por somente um companheiro(a) do par homossexual? A permanência dos menores nos abrigos? É preciso que visitem logo estas instituições, antes que os então adolescentes, postos nas ruas após a maioridade, transformem-se em muitos daqueles com relação aos quais, infelizmente, pensarão em se proteger...

Enézio de Deus é membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM; autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, Editora Juruá; bacharel em Direito; pós-graduando em Direito Público; docente; compositor. eneziosilva@zipmail.com.br


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Para além do dia oito de Março
Por Enézio de Deus

Uma das lutas mais injustas, assistidas no decorrer dos tempos, tem sido a que sempre e, silenciosamente, menosprezou não só as mulheres, mas todos os que se sentem femininos, que se identificam com tal papel de gênero, mesmo sendo do sexo masculino (como, por exemplo, homens homossexuais e bissexuais, mais próximos - em comportamento - do sexo oposto, que ainda são tolhidos em um âmbito restrito de atuações, excluídos de decisões políticas relevantes e vistos, não raro, com preconceito, de dentro da própria comunidade GLSBT). Como efetivar um respeito mais integral à pessoa humana?

Em uma contextualização histórico-cultural, sabe-se que, desde a Grécia Antiga (quando as mulheres não gozavam do status de cidadania), até a França pós-revolucionária do século XVIII (quando os homens, na divisão do espaço político, impuseram-lhes o lócus privado do lar), o preconceito, com base nas questões de sexo e de gênero, vêm dificultando uma convivência, de fato, igualitária em sociedade, até os nossos dias. Só a partir da chamada “revolução sexual”, das décadas de 60 e 70 do século XX, verificou-se um lento processo de equiparação social, familiar, econômica, política e jurídica das mulheres, com relação aos homens. É, entretanto, crucial que percebamos este caminho de lutas e de vitórias, não como uma arena de competição entre os sexos, mas como possibilidades estratégicas de integração, para haver crescimento, em todos os âmbitos. Nas discussões de uma data, como o Dia Oito de Março, não se pode silenciar quanto a aspectos que vão além do binômio “homem x mulher”, como as múltiplas possibilidades de se atuar e de se sentir masculino ou feminino, em uma sociedade tão marcada pelos preconceitos, com base na orientação sexual das pessoas. O reflexo da preponderante visão machista-heterossexista tem, por exemplo, estendido seus prejuízos não só às mulheres (hétero, bi e homossexuais), mas aos homens (de todas as orientações sexuais) que, de qualquer modo, atuem no espectro institucionalizado, culturalmente, como - somente? - feminino.

Felizmente, já é claro que as pessoas do sexo feminino são detentoras das mesmas capacidades inerentes a todos os seres humanos, pois os traços masculinos e femininos de comportamento apenas se complementam e se fundem, na atuação, em prol da evolução social e da construção da cidadania. A Constituição Federal declara, expressamente, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (inciso I, art. 5°), quando, na verdade, esta garantia já está expressa no caput do mesmo artigo 5°, na exposição de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Por que o legislador constituinte ratificou a igualdade, no referido inciso I? Com tal postura, acabou por evidenciar a necessidade de reforço, com relação a um aspecto da vida em sociedade, que merece toda a nossa atenção: os flagrantes desrespeitos às pessoas, por serem femininas no sexo, na identidade psíquica, na forma de viver a afetividade ou no papel de gênero evidenciado. Da Lei Maior, aos dispositivos infraconstitucionais, busca-se uma igualdade sólida, material, substancial. Mas, diuturnamente, são várias as discriminações que violentam as mulheres e os homens femininos, tácita e explicitamente, em setores sociais diversos, o que não se mais pode admitir. Como atuar frente a formas complexas e conjugadas de discriminação? O que oferecer às milhões de adolescentes gestantes miseráveis e pobres? E frente às mulheres negras e deficientes físicas, a um só tempo? Como efetivar o respeito às homossexuais femininas? Como fazer compreender que os homossexuais, do sexo masculino, que apresentem trejeitos femininos, são tão - ou mais - homens quanto os demais? Como conscientizar os homens e as mulheres que se submetem à violência doméstica? Como reconstituir, psicológica e socialmente, as pessoas que foram e que são “coisificadas”, como objetos de exploração, para o trabalho e/ou somente para a satisfação sexual?

Por mais que os sistemas jurídicos evoluam, em matéria de direitos fundamentais, o Direito, por si só, não será suficiente para integrar os socialmente discriminados. Neste sentido, o caminho da efetivação solidária e do respeito às mulheres (e a todos que se sentem, por qualquer razão, prejudicados pela discriminação – por serem ou agirem do modo determinado como feminino), é o caminho da conscientização política, para o satisfatório exercício da cidadania e para a ampliação de políticas públicas eficazes contra o preconceito. Todos, pois, somos convidados à educação social, como agentes de transformação, independente do ramo científico ao qual estamos mais vinculados e da função que exercemos. Como, sabiamente, afirma o professor-educador J. J. Calmom de Passos, “o Direito é, por natureza, e não vai deixar de ser jamais, um instrumento de dominação (...). O caminho é a política, a luta política”. Por tal esteira, a união multidisciplinar e solidária de todos cidadãos conscientes é crucial, dentro das suas possibilidades de atuação, porque a teia da discriminação é complexa, passa por inúmeras tangentes, exigindo uma intervenção educacional ampla, para além das questões de gênero e do restrito binômio que diferencia, físico-biologicamente, os sexos. Dessa forma, fixar o compromisso de preservação na dignidade ou na essência humana apresenta-se como a sólida e desafiadora trilha, em direção a um amanhã sustentável, do ponto de vista relacional, individual e coletivo. Então, finalmente, o Dia Oito de Março será a conquista diária da cidadania, através de um respeito que não deve se restringir às externalidades (físicas, legais, sócio-culturais); deve partir do âmago de cada pessoa, dentro das inúmeras e dignas possibilidades de cada um ser feliz, ao seu singular e fantástico modo.

Enézio de Deus é membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM; autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, Editora Juruá; bacharel em Direito; pós-graduando em Direito Público; docente; compositor. eneziosilva@zipmail.com.br


- enviado por Marccelus @ 2:43 PM
 
A (HOMO)SEXUALIDADE E O ESTADO

Por Enézio de Deus

A sexualidade, a partir da revelação freudiana da existência do inconsciente, ganhou uma dimensão científica ampla, desde fins do século XIX e, em especial, do início do século passado. No atual estágio do conhecimento humano, os preconceitos, na verdade, é que deturpam a vivência e a atual compreensão da afetividade. Inadequadas e cientificamente incoerentes, expressões como "opção sexual", "escolha sexual", "transtorno", "perversão" e "inversão" distanciam-se da visão hodierna da sexualidade, no que tange, especificamente, à orientação ou ao direcionamento dos desejos das pessoas, se para idêntico, para oposto ou para ambos os sexos. Neste sentido, as variantes sexuais devem ser entendidas como naturais possibilidades afetivas da orientação humana de desejo. Sem dúvida, entre as três já mencionadas direções de afeto, reconhecidas cientificamente (a homossexual, a bissexual e a heterossexual), a primeira esbarra em reprovações dos mais variados graus, a depender da cultura e do contexto considerado, por conta de "pré-julgamentos" historicamente sedimentados e por ser uma manifestação de desejo socialmente camuflada – via de conseqüência, minoritária para os registros científicos. Entretanto, ao revés do que muitos equivocadamente ainda sustentam, sabe-se que, na seara da homossexualidade, não há que se falar em opção, visto que ninguém escolheria ter uma vida sexual estigmatizada.

Ao contrário do por ora assentado entendimento de que as três variantes básicas do desejo são traços naturais da orientação psíquico-afetiva - como determinante na direção manifestada pela vontade sexual - , a ciência não apresenta um consenso sobre o(s) provável(eis) gérmen(s) desse direcionamento desejante dos seres humanos. Avançam os estudos em diversos campos, mas não se atingiu um consenso científico a tal respeito. É óbvio que a preocupação investigativa é para com a homossexualidade, o que evidencia a clara tendência de adoecimento ou ranço de patologização da mesma, apesar dos avanços cientíticos neste sentido. Nas áreas da Medicina, da Psicologia e da Psicanálise, a saber, já caíram por terra todos os entendimentos que associavam distúrbios mentais, patologias e doenças à orientação homossexual. Contribuíram, para tanto, a Associação Americana de Psiquiatria, a Associação de Psicologia Americana, a Associação Brasileira de Psiquiatria e o Conselho Federal de Medicina. Em 1985, por exemplo, quando o Código Internacional de Doenças - CID - foi revisado, o homossexualismo 'puro e simples' foi inserido no capítulo 'Dos Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais' e, em 1995, definitivamente, na décima revisão do CID - 10, deixou de ser considerado doença, substituindo-se o sufixo “ismo” (que indica patologia), por “dade”(que significa modo de agir e/ou de ser). Sintonizado com tais avanços, o Conselho Federal de Psicologia, a partir da louvável Resolução nº1 de 1999, passou a proibir que psicólogos manifestem opinião de que a homossexualidade seja doença, que proponham ou se envolvam, de qualquer modo, com ações que busquem “curá-la” ou descaracterizá-la.

Religião e Estado, tendo se separado a partir dos séculos XVII e XVIII, provocaram um fenômeno reconhecido, historicamente, como laicização. À medida que a força dos dogmas e das pressões doutrinárias foi diminuindo dentro das estruturas estatais, muitos avanços se verificaram em matéria de direitos fundamentais, dentro da qual a afetividade ocupa o seu espaço intocável. Nesta seara, não se pode admitir retrocesso, porque as garantias de uma vida afetiva digna devem ser somente ampliadas. Seriam hilários, se não fossem tão preocupantes, discursos vindos do Vaticano, de algumas igrejas protestantes, de grupos de psicoterapeutas (cristãos!) brasileiros e de alguns membros do Poder Legislativo (nas três esferas), que acabam se infiltrando nas estruturas estatais, fortalecendo o não-reconhecimento da livre orientação sexual como um direito fundamental, a negação de efeitos jurídicos às uniões entre homossexuais e o reforço à não aprovação de projetos de lei, que possam, direta ou indiretamente, favorecer a cidadania dos que se sentem atraídos pelo mesmo sexo. Tentativa de interferência de disfarçados fundamentos religiosos (infundados cientificamente) na atividade estatal foi o recente e não aprovado Projeto de Lei Estadual nº 717/2003, que, encaminhado à AERJ, previa a criação, pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, de um programa de auxílio às pessoas que, “voluntariamente, optarem pela mudança da homossexualidade para a heterossexualidade”! Iniciativas, como esta, desconhecem tanto o que a ciência diz sobre a homossexualidade, como o caráter laico secular da nossa estrutura jurídico-político-estatal.

Vislumbrando-se os avanços científicos em torno da sexualidade, o peso do preconceito, com base na orientação homossexual de milhões de cidadãos, e a atuação dos Três Poderes no Brasil (país laico e democrático), ainda se percebe, por exemplo, no âmbito do Poder Judiciário, a necessidade de alguns magistrados realizarem interpretações e aplicações mais justas, humanas e socialmente úteis das leis, capazes de reconhecer os direitos emergentes das uniões familiares homossexuais e de lhes possibilitar um mais amplo acesso à justiça. Na seara do Poder Executivo, verifica-se a urgência de políticas públicas conscientizadoras de que o respeito à pessoa deve passar, também, pelo respeito à sua afetividade. O Poder Legislativo, por seu turno, deve atuar através da criação de leis que ampliem a segurança em torno do exercício dos direitos fundamentais. No âmbito do Legislativo Federal, por exemplo, é claro o silêncio, que, até o momento, não contribuiu para afirmar a dignidade e o respeito efetivo a milhões de brasileiros vitimados pela homofobia. A omissão de considerável parte do Congresso Nacional, o atávico alarde das bancadas conservadoras desse (católicas e protestantes), o fundamento de algumas decisões judiciais e a inexistência de ações afirmativas eficazes, em torno do direito à livre expressão sexual, suscitam indagações inconcebíveis, em um Estado constituído como Democrático de Direito (art. 1 o , caput, CF/88): alguns legisladores podem excluir da apreciação jurídico-normativa considerável parcela da população, por preconceito ou por temor de se “comprometerem” socialmente? Conseguirá, a República Federativa do Brasil, "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (art. 3 o , I, CF/88), bem como "promover o bem de todos, sem preconceitos (...) e quaisquer outras formas de discriminação", a não ser com um engajamento sério dos representantes legítimos do Estado, para com a cidadania de todos os brasileiros, sem distinção? Se a cidadania e a dignidade da pessoa humana são fundamentos da República Brasileira (art. 1 o , I e III, CF), como admitir omissão estatal em matéria de direitos humanos fundamentais - a exemplo da livre orientação afetivo-sexual? Na ausência hodierna de uma lei federal, que regulamente, no Brasil, as uniões homossexuais e seus efeitos jurídicos, os magistrados podem dificultar ou negar, o acesso à justiça (seja ao processo, seja a uma decisão justa) aos homossexuais, demonstrando um tratamento diferenciado com base somente na orientação sexual das partes?

O estágio atual do conhecimento humano impossibilita juízos discriminatórios e omissões estatais, com base na orientação sexual das pessoas. Até o momento, a discriminação por omissão, percebida na esfera, por exemplo, do Poder Legislativo no âmbito federal (quanto aos direitos decorrentes da uniões homossexuais e da própria homossexualidade) assenta-se em concepções que jamais poderiam interferir na atividade de representantes legítimos da sociedade, pois são insustentáveis do ponto de vista científico. Os argumentos das bancadas já referidas, por exemplo, refletindo interpretações ou posicionamentos subjetivos e culturais delimitados, não devem se sustentar como óbice à aprovação de projetos que, por exemplo, equiparem, para fins diversos, os efeitos jurídicos das uniões homossexuais aos das relações heterossexuais. O que fundamenta tais projetos não é doutrina (ou questões de fé), mas a cidadania e a dignidade de pessoas e famílias excluídas do ordenamento positivo, por conta de um traço fundamental, que não mais pode ser alvo de discriminação: a orientação afetivo-sexual. Se essa, voltando-se para o mesmo sexo, fere dogmas ou a forma particular de interpretação bíblica desta e daquela igreja ou doutrina, o Estado não tem a ver com isso, devendo tratar e conceber, material ou substancialmente, os seus cidadãos, como "iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (art. 5 o , caput ). Caso contrário, abre mão da cientificidade, da defesa dos direitos humanos e afronta princípios constitucionais elementares, admitindo influências de ordem ideológico-religiosa. O silêncio estatal, além de perverso, é desvio de compromisso (para com os direitos humanos), por omissão, que rompe o pacto social erigido com a Lei Maior de 1988, pois deixa sem reconhecimento e regulação efetiva o atributo fundamental à livre afetividade. O acesso à justiça, para além do aparelho judiciário (do processo e da atividade jurisdicional), encontra na produção/omissão legislativa o maior obstáculo e a nascente impeditiva do exercício pleno da cidadania, por parte das chamadas minorias sexuais. Sem dúvida, o direito constitucional a uma ordem jurídico-social justa só se estenderá aos homossexuais (enquanto categoria hipossuficiente, frente ao preconceito e à intolerância), quando os membros do legislativo compreenderem a incoerência ético-profissional de atuarem motivados ou influenciados por preconceitos ou por dogmatismos engessados. O Projeto de Lei nº 5.252/01, por exemplo, do Deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), substitutivo do anterior 1.151/95, de autoria da então Deputada Marta Suplicy, caso aprovado, poderia beneficiar os que se relacionam com o mesmo sexo e teria o condão de retirar o Brasil do atraso em que se encontra, frente a tantos outros países, que já regulamentaram a matéria.

Em que pesem os preconceitos evidenciados nas decisões de muitos magistrados, a atividade jurisprudencial tem sido o instrumento de justiça mais eficiente, ainda que tênue, em matéria de direitos emergentes das uniões homossexuais e contra a discriminação com base na orientação sexual. Devido à proibição de os juízes se eximirem de julgar (de despachar ou sentenciar), alegando lacuna ou obscuridade na lei - art. 4 o , LICC e art. 126, caput , CPC -, e ante o princípio da inafastabilidade, segundo o qual todas as lesões ou ameaças a direitos devem ser submetidas à apreciação do Poder Judiciário - art. 5 o , XXXV, CF -, compreende-se a postura não omissiva desse. Atualizar o sistema jurídico e, em especial, o ordenamento, mediante a conformação da lei com o atual arranjo social, é a maior garantia que se pode auferir do labor jurisprudencial, pois, dessa conformação, depende a viabilização dos demais direitos.

Frente a um Estado laico, como o brasileiro, que se afirma Democrático de Direito (art. 1º, caput , CF/88), que consagra a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da República (art. 1º, incs. II e III, CF/88) e que eleva a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” a um dos seus objetivos fundamentais (art. 3º, inc. I, CF/88), permitir que sentimentos, ideologias doutrinário-religiosas ou posturas não validadas cientificamente interfiram nas atividades dos Três Poderes será decretar o desmoronamento da segurança jurídica. Definitivamente, a principal característica da contemporaneidade é a racionalização (prova científica), através do rompimento do Estado com a Religião, o que tem viabilizado uma maior efetivação da estabilidade democrática, da igualdade substancial e da solidariedade social, sem discriminação ou preconceito de qualquer natureza (art. 3°, III e IV, art. 5º, caput, CF ). Para desconsiderar as iniciativas discriminatórias, que tentam se infiltrar nas atividades estatais, é suficiente que os representantes e autoridades do Estado atuem nos limites legais do poder-dever do qual estão investidos, em prol da emancipação e do bem-estar individual e coletivo, considerando a dignidade dos cidadãos, como o ponto de partida e o fim primordial das suas ações, sem qualquer tipo de restrição. Só por meio do respeito à essência humana e aos bens fundamentais à existência, haverá vida social com paz e bem-estar pleno.


- enviado por Marccelus @ 2:42 PM



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05.2005
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