Adoção por Casais Homossexuais

Por Enézio de Deus
O tema voltou à baila com a novela global Senhora do Destino (personagens Heleonora, Jenifer e Renato). Por uma coincidência, meu livro - considerado pioneiro na abordagem - saiu da Editora Juruá no momento em que a sociedade reflete o que a mídia apresenta. Novidade da TV? Nenhuma, de vez que deferimentos de adoções a homossexuais solteiros já são corriqueiros nas Varas da Infância e da Juventude. A temática da possibilidade da adoção pelo casal homossexual, entretanto, nova, instigante e que defendo em minha obra, tornar-se-á, em breve, um dos debates mais calorosos, nos âmbitos do Direito da Criança e do Adolescente e do Direito de Família, vislumbrados constitucionalmente. Se, com efeito, não há precedente jurisprudencial no Brasil deferindo adoção de menor, a dois homossexuais que se amam (e que, por isso, convivem juntos), já há inúmeras decisões apontando para uma abertura que não tardará a fazer inteira justiça, com relação à realidade hipócrita que tem permeado, de há muito, os Juizados da Infância e da Juventude: quando um casal homoafetivo preenche os traços modernamente reconhecidos pelos familiaristas como caracterizadores de uma família e desejam adotar, um deles tem que escolher qual formalizará o vínculo definitivo de paternidade/maternidade com o menor, através do processo de adoção, e os dois acabam educando e criando o ser humano, posteriormente, inserido em seu lar substituto bi-parental (e não pseudo-monoparental).
Pela primeira vez no constitucionalismo pátrio, a Constituição Federal de 1988 rompeu com a noção familiar atrelada somente ao casamento, elevando a família, qualquer que seja ela, a base da sociedade merecedora de plena e especial proteção do Estado (art. 226, caput, CF).
Neste sentido, não é o ente estatal, nem o constituinte (e nem tão pouco as igrejas!) que devem dizer o que é família, mas a complexa dinâmica social que tem na aproximação (pela afetividade mútua e ostensiva), a viga-mestra da composição familiar, distinguindo-a das demais interações humanas. Assim, ao lado dos tipos familiares, reconhecidos e exemplificados expressamente nos §§ 1º, 2º (família casamentária), no § 3º (união estável) e no § 4º (família monoparental, independente da orientação sexual dos pais e dos seus descendentes) do artigo 226 da Lei Maior, o Poder Judiciário vem reconhecendo modalidades de família não tuteladas expressamente, mas inclusas na cláusula geral do caput do referido art. 226, como as uniões afetivamente estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Com efeito, não cabe ao aplicador da lei ou ao intérprete restringir onde a norma constitucional não o faz – principalmente sendo a livre constituição familiar um direito fundamental, como extensão da afetividade dos cidadãos. No já aberto caminho jurisprudencial de reconhecimento de efeitos jurídico-familiares às uniões homoafetivas (mesmo na ausência de lei federal que as regulamente no Brasil), clara é a possibilidade jurídica de a analogia com a modalidade familiar da União Estável estender seus reflexos, viabilizando a constituição do vínculo de filiação adotiva entre um menor e dois homossexuais que, por se amarem, formam um ambiente familiar adequado ao normal desenvolvimento de um ser humano. Afinal, a orientação afetivo-sexual de uma pessoa, de per si, não determina possíveis desvios comportamentais, que a inabilite ao exercício da paternidade/maternidade responsável. De igual sorte, compor um lócus familiar equilibrado não é atributo somente de casais heterossexuais; e mais competentes, científica e tecnicamente para avaliar tais questões, do que o próprio juiz da infância e da juventude, são os psicólogos e os assistentes socials, que devem elaborar parecer técnico, opinando sobre a (in)compatibilidade da ambiência familiar estudada, para a boa educação da criança e/ou do adolescente. Infelizmente, muitas varas não contam com o relevante serviço interprofissional, como exige o art. 150 do ECA...
Assim como não é qualquer vinculação heterossexual, que revela a segurança afetiva e a estabilidade suficiente (para o casal se habilitar e lograr o deferimento do pedido de adoção), não é qualquer união homossexual que pode ensejar tal colocação definitiva de menor em seu seio familiar homoafetivo.
A responsabilidade do magistrado é extrema, em todos os processos em torno dos quais pairem os interesses dos menores. Além de desaconselhado diferenciar onde o legislador não o faz (como na ampla caracterização de família substituta e de casal no ECA, que não restringe quanto à orientação sexual), é importante sintonizar a prestação jurisdicional com os avanços sociais, para além dos subjetivismos (dos temores injustificados) ou dos preconceitos, que têm determinado o indeferimento, de plano, das petições iniciais formuladas por pares homossexuais, que desejam oferecer uma segurança jurídica maior aos menores e lhes educarem juntos. Qual a impossibilidade jurídica do pedido? Como esta não se sustenta, em uma interpretação do ordenamento submetida à ótica constitucional e aos hodiernos avanços jurisprudenciais na matéria do Direito para com a homoafetividade, o mais sensato é tirar a venda dos olhos e verificar que esta delicada questão exige uma tomada justa de posição – já que o abandono, a marginalidade e o preconceito, que aplacam as minorias (os menores e os homossexuais, p. ex.), não “alisam”, em um país ainda excludente, como o nosso... Contra os que só enxergam a homossexualidade dos candidatos - tendo a homofobia como pano de fundo dos seus argumentos -, basta a inexorável verdade de que é o amor que forma uma família. O que os opositores têm suscitado como solução? A adoção disfarçada por somente um companheiro(a) do par homossexual? A permanência dos menores nos abrigos? É preciso que visitem logo estas instituições, antes que os então adolescentes, postos nas ruas após a maioridade, transformem-se em muitos daqueles com relação aos quais, infelizmente, pensarão em se proteger...
Enézio de Deus é membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM; autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, Editora Juruá; bacharel em Direito; pós-graduando em Direito Público; docente; compositor. eneziosilva@zipmail.com.br