Para além do dia oito de Março
Uma das lutas mais injustas, assistidas no decorrer dos tempos, tem sido a que sempre e, silenciosamente, menosprezou não só as mulheres, mas todos os que se sentem femininos, que se identificam com tal papel de gênero, mesmo sendo do sexo masculino (como, por exemplo, homens homossexuais e bissexuais, mais próximos - em comportamento - do sexo oposto, que ainda são tolhidos em um âmbito restrito de atuações, excluídos de decisões políticas relevantes e vistos, não raro, com preconceito, de dentro da própria comunidade GLSBT). Como efetivar um respeito mais integral à pessoa humana?
Em uma contextualização histórico-cultural, sabe-se que, desde a Grécia Antiga (quando as mulheres não gozavam do status de cidadania),
até a França pós-revolucionária do século XVIII (quando os homens, na divisão do espaço político, impuseram-lhes o lócus privado do lar), o preconceito, com base nas questões de sexo e de gênero, vêm dificultando uma convivência, de fato, igualitária em sociedade, até os nossos dias. Só a partir da chamada “revolução sexual”, das décadas de 60 e 70 do século XX, verificou-se um lento processo de equiparação social, familiar, econômica, política e jurídica das mulheres, com relação aos homens. É, entretanto, crucial que percebamos este caminho de lutas e de vitórias, não como uma arena de competição entre os sexos, mas como possibilidades estratégicas de integração, para haver crescimento, em todos os âmbitos. Nas discussões de uma data, como o Dia Oito de Março, não se pode silenciar quanto a aspectos que vão além do binômio “homem x mulher”, como as múltiplas possibilidades de se atuar e de se sentir masculino ou feminino, em uma sociedade tão marcada pelos preconceitos, com base na orientação sexual das pessoas. O reflexo da preponderante visão machista-heterossexista tem, por exemplo, estendido seus prejuízos não só às mulheres (hétero, bi e homossexuais), mas aos homens (de todas as orientações sexuais) que, de qualquer modo, atuem no espectro institucionalizado, culturalmente, como - somente? - feminino.
Felizmente, já é claro que as pessoas do sexo feminino são detentoras das mesmas capacidades inerentes a todos os seres humanos, pois os traços masculinos e femininos de comportamento apenas se complementam e se fundem, na atuação, em prol da evolução social e da construção da cidadania. A Constituição Federal declara, expressamente, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (inciso I, art. 5°), quando, na verdade, esta garantia já está expressa no caput do mesmo artigo 5°, na exposição de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Por que o legislador constituinte ratificou a igualdade, no referido inciso I? Com tal postura, acabou por evidenciar a necessidade de reforço, com relação a um aspecto da vida em sociedade, que merece toda a nossa atenção: os flagrantes desrespeitos às pessoas, por serem femininas no sexo, na identidade psíquica, na forma de viver a afetividade ou no papel de gênero evidenciado. Da Lei Maior, aos dispositivos infraconstitucionais, busca-se uma igualdade sólida, material, substancial. Mas, diuturnamente, são várias as discriminações que violentam as mulheres e os homens femininos, tácita e explicitamente, em setores sociais diversos, o que não se mais pode admitir. Como atuar frente a formas complexas e conjugadas de discriminação? O que oferecer às milhões de adolescentes gestantes miseráveis e pobres? E frente às mulheres negras e deficientes físicas, a um só tempo? Como efetivar o respeito às homossexuais femininas? Como fazer compreender que os homossexuais, do sexo masculino, que apresentem trejeitos femininos, são tão - ou mais - homens quanto os demais? Como conscientizar os homens e as mulheres que se submetem à violência doméstica? Como reconstituir, psicológica e socialmente, as pessoas que foram e que são “coisificadas”, como objetos de exploração, para o trabalho e/ou somente para a satisfação sexual?
Por mais que os sistemas jurídicos evoluam, em matéria de direitos fundamentais, o Direito, por si só, não será suficiente para integrar os socialmente discriminados.
Neste sentido, o caminho da efetivação solidária e do respeito às mulheres (e a todos que se sentem, por qualquer razão, prejudicados pela discriminação – por serem ou agirem do modo determinado como feminino), é o caminho da conscientização política, para o satisfatório exercício da cidadania e para a ampliação de políticas públicas eficazes contra o preconceito. Todos, pois, somos convidados à educação social, como agentes de transformação, independente do ramo científico ao qual estamos mais vinculados e da função que exercemos. Como, sabiamente, afirma o professor-educador J. J. Calmom de Passos, “o Direito é, por natureza, e não vai deixar de ser jamais, um instrumento de dominação (...). O caminho é a política, a luta política”. Por tal esteira, a união multidisciplinar e solidária de todos cidadãos conscientes é crucial, dentro das suas possibilidades de atuação, porque a teia da discriminação é complexa, passa por inúmeras tangentes, exigindo uma intervenção educacional ampla, para além das questões de gênero e do restrito binômio que diferencia, físico-biologicamente, os sexos. Dessa forma, fixar o compromisso de preservação na dignidade ou na essência humana apresenta-se como a sólida e desafiadora trilha, em direção a um amanhã sustentável, do ponto de vista relacional, individual e coletivo. Então, finalmente, o Dia Oito de Março será a conquista diária da cidadania, através de um respeito que não deve se restringir às externalidades (físicas, legais, sócio-culturais); deve partir do âmago de cada pessoa, dentro das inúmeras e dignas possibilidades de cada um ser feliz, ao seu singular e fantástico modo.
Enézio de Deus é membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM; autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, Editora Juruá; bacharel em Direito; pós-graduando em Direito Público; docente; compositor. eneziosilva@zipmail.com.br
