Só há digniddae, com respeito à livre afetividade
Por Enézio de Deus
Sabiamente, Jung registrou: “O ser humano é um resultado peculiar de uma experiência da natureza e, especialmente quanto à vida erótica, tudo é possível”. De fato, é perceptível no cotidiano e comprovado por pesquisas – como o famoso relatório do Dr. Alfred Kinsey, norte-americano – que, entre a manifestação heterossexual e a homossexual (presumidamente puras), há uma infinidade de graus comportamentais na seara da sexualidade e da afetividade, que mesclam tendências, gostos pessoais, fantasias e, por exemplo, uma orientação sexual voltada para ambos os sexos em um mesmo sujeito. Existem os que só se satisfazem com o mesmo sexo; outros, com o oposto; os que, periodicamente, alternam relações com homens e com mulheres; há os sexualmente livres, mais trabalhados; os reprimidos, os recalcados em níveis diversos; os pervertidos de toda sorte, etc. Novidade? Nenhuma; mas ainda insistimos em problematizar demais algo tão belo e natural como a sexualidade. Desse modo, apesar dos incontestes avanços da Psicologia e do Direito nesse campo específico, maior parcela da humanidade reluta em não tratar os fenômenos ou assuntos da vida sexual com a clareza e a simplicidade que eles exigem, além de repudiar - violentando direitos fundamentais – os que não se rotulam nos padrões instituídos como “normais” e esperados sócio-culturalmente.
Seguramente, a causa para tanta estigmatização da sexualidade reside nos “pré-conceitos”, verdadeiros lixos sedimentados no inconsciente coletivo no decorrer da história universal. Ressalto, aqui, a influência marcante de maior parte das concepções judaico-cristãs no Mundo Ocidental, por demais vazias e tendenciosas a respeito da sexualidade. Isso me lembra, por exemplo, a máxima do “Crescei e multiplicai-vos” ou a pouco esclarecida história de Sodoma e Gomorra, tão prejudiciais àqueles que se sentem atraídos pelo mesmo sexo. Na realidade, o que nos falta é senso crítico, visão integrativa e menos hipocrisia. É por, infelizmente, vivermos na sociedade da persona (da máscara, da aparência), que insistiremos em tapar o sol dos nossos desejos com peneiras tão fúteis? Em outras palavras, até quando fingir com o discurso dos padrões sexuais institucionalizados, se os nossos mais íntimos desejos, fantasias infindáveis, mantêm-se geralmente distantes daqueles padrões e se o nosso semelhante, que tanto censura, é no fundo idêntico a nós? Bem ensinou Cristo: “Quem não tiver pecado atire a primeira pedra”. Transpondo para a presente análise, entendamos o “pecado” como aqueles ardentes pensamentos e ações que movimentam as labaredas da libido gostosamente, que, por hipocrisia, condenamos no outro, mas permeiam a nossa vivência diária na rua, no carro, no elevador, debaixo ou sobre os lençóis...
Certamente, se tivéssemos acesso a uma educação plena para a sexualidade, pautada somente em princípios éticos, ser-nos-ia mais fácil exercitá-la sem tantos medos e culpas (os verdadeiros pecados desnecessários), como, também, centrar-nos-íamos nas nossas questões, ao invés de nos deixarmos contaminar pela febre cultural do incômodo com a sexualidade e a vida íntima alheias. De fato, quem mais se incomoda com os prazeres e desprazeres sexuais dos outros é que, efetivamente, encontra-se mal resolvido, pelo fato de não ter conseguido ou nem tentando trabalhar as suas emoções efetivo-sexuais conflitantes, pendentes. Instituições religiosas, como a Igreja Católica, por exemplo, que se arvoram a falar de dignidade e direitos humanos, têm sido as que mais sutilmente depreciam a essência dos que não se encaixam no modelo da “sagrada família” – com par de sexos diferentes (presumidamente heterossexual) e indissolúvel. Como promover a paz, sem o devido respeito aos bens essenciais a uma vida digna?
Estando em posição de destaque entre tais bens, a livre afetividade representa natural extensão da essência desejante e, por tal razão, é tutelada, implícita ou explicitamente, por quase todos os ordenamentos jurídicos, tratados e convenções internacionais. Mesmo que a expressão “orientação sexual” não esteja mencionada, literalmente, em lei (como não consta na Constituição Brasileira de 1988), pouca interpretação ou hermenêutica é necessária, para se concluir que ela integra os chamados direitos fundamentais. Basta a inexorável verdade que, sem exercitá-la ou tolhido na movimentação do natural direcionamento dos seus desejos (sejam para o mesmo, para ambos ou para o oposto sexo), o ser humano resta fragmentado, violentado ou sobrevivendo até com dificuldade. Neste sentido, não há que se falar em respeito à dignidade humana, sem o devido e correspondente respeito à livre afetividade! Pensando em contribuir, jurídica e cientificamente, para a maior desvinculação da homossexualidade dos aspectos somente sexuais e genitais dessa orientação sexual, foi que eu tive a felicidade de cunhar, na língua portuguesa (através do devido registro e da publicação do meu livro pela Editora Juruá), o vocábulo homoessência e suas variantes - homoessencial, homoessencialidade -, na medida em que, sendo expressão da essência emocional-desejante de milhões de seres humanos e parte da dignidade desses (núcleo de proteção jurídica mais especial e essencial), a atração pelo mesmo sexo é tão afetivamente natural e verdadeira, quanto as demais aproximações que tem o amor como fundamento e tônica de sustentação.
É evidente a necessidade do auto-aprimoramento constante e de uma reflexão profunda a respeito dos paradigmas – a exemplo de alguns preceitos, dogmas religiosos ou posturas fundamentalistas –, que persistem no bloqueio ao lento processo de libertação da sexualidade humana. Até que essa seja efetivada, que sejamos mais honestos e corajosos para enxergar o que não queremos e para mobilizar forças rumo ao equilíbrio afetivo-sexual de todos, sem distinção, o que, sem dúvida, acarretará benefícios em outros âmbitos da vida. Se o nosso Estado é Democrático de Direito (art. 1º, CF/88) e se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária é um dos primordiais objetivos da República Federativa Brasileira (art. 3º, CF/88), não podemos abir mão do caráter laico das nossas instituições estatais e democráticas. Esta será a maior segurança dos que se sentem vitimados por preconceitos, que jamais poderiam partir de estruturas fundamentais, como o Poder Legislativo – muitas vezes, influenciado por bancadas, que não querem dar o “direito” a todos, mas somente aos que se submetem ou aderem aos seus preceitos. Por estas e outras constatações absurdas, é que podemos repetir a poética: “Que país é este?”...
Enézio de Deus é autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, Editora Juruá; membro do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família; bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); pós-graduando em Direito Público pela Universidade Salvador (UNIFACS); compositor. eneziosilva@zipmail.com.br
