A (HOMO)SEXUALIDADE E O ESTADO
Por Enézio de Deus
A sexualidade, a partir da revelação freudiana da existência do inconsciente, ganhou uma dimensão científica ampla, desde fins do século XIX e, em especial, do início do século passado. No atual estágio do conhecimento humano, os preconceitos, na verdade, é que deturpam a vivência e a atual compreensão da afetividade. Inadequadas e cientificamente incoerentes, expressões como "opção sexual", "escolha sexual", "transtorno", "perversão" e "inversão" distanciam-se da visão hodierna da sexualidade, no que tange, especificamente, à orientação ou ao direcionamento dos desejos das pessoas, se para idêntico, para oposto ou para ambos os sexos. Neste sentido, as variantes sexuais devem ser entendidas como naturais possibilidades afetivas da orientação humana de desejo. Sem dúvida, entre as três já mencionadas direções de afeto, reconhecidas cientificamente (a homossexual, a bissexual e a heterossexual), a primeira esbarra em reprovações dos mais variados graus, a depender da cultura e do contexto considerado, por conta de "pré-julgamentos" historicamente sedimentados e por ser uma manifestação de desejo socialmente camuflada – via de conseqüência, minoritária para os registros científicos. Entretanto, ao revés do que muitos equivocadamente ainda sustentam, sabe-se que, na seara da homossexualidade, não há que se falar em opção, visto que ninguém escolheria ter uma vida sexual estigmatizada.
Ao contrário do por ora assentado entendimento de que as três variantes básicas do desejo são traços naturais da orientação psíquico-afetiva - como determinante na direção manifestada pela vontade sexual - , a ciência não apresenta um consenso sobre o(s) provável(eis) gérmen(s) desse direcionamento desejante dos seres humanos. Avançam os estudos em diversos campos, mas não se atingiu um consenso científico a tal respeito. É óbvio que a preocupação investigativa é para com a homossexualidade, o que evidencia a clara tendência de adoecimento ou ranço de patologização da mesma, apesar dos avanços cientíticos neste sentido. Nas áreas da Medicina, da Psicologia e da Psicanálise, a saber, já caíram por terra todos os entendimentos que associavam distúrbios mentais, patologias e doenças à orientação homossexual. Contribuíram, para tanto, a Associação Americana de Psiquiatria, a Associação de Psicologia Americana, a Associação Brasileira de Psiquiatria e o Conselho Federal de Medicina. Em 1985, por exemplo, quando o Código Internacional de Doenças - CID - foi revisado, o homossexualismo 'puro e simples' foi inserido no capítulo 'Dos Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais' e, em 1995, definitivamente, na décima revisão do CID - 10, deixou de ser considerado doença, substituindo-se o sufixo “ismo” (que indica patologia), por “dade”(que significa modo de agir e/ou de ser). Sintonizado com tais avanços, o Conselho Federal de Psicologia, a partir da louvável Resolução nº1 de 1999, passou a proibir que psicólogos manifestem opinião de que a homossexualidade seja doença, que proponham ou se envolvam, de qualquer modo, com ações que busquem “curá-la” ou descaracterizá-la.
Religião e Estado, tendo se separado a partir dos séculos XVII e XVIII, provocaram um fenômeno reconhecido, historicamente, como laicização. À medida que a força dos dogmas e das pressões doutrinárias foi diminuindo dentro das estruturas estatais, muitos avanços se verificaram em matéria de direitos fundamentais, dentro da qual a afetividade ocupa o seu espaço intocável. Nesta seara, não se pode admitir retrocesso, porque as garantias de uma vida afetiva digna devem ser somente ampliadas. Seriam hilários, se não fossem tão preocupantes, discursos vindos do Vaticano, de algumas igrejas protestantes, de grupos de psicoterapeutas (cristãos!) brasileiros e de alguns membros do Poder Legislativo (nas três esferas), que acabam se infiltrando nas estruturas estatais, fortalecendo o não-reconhecimento da livre orientação sexual como um direito fundamental, a negação de efeitos jurídicos às uniões entre homossexuais e o reforço à não aprovação de projetos de lei, que possam, direta ou indiretamente, favorecer a cidadania dos que se sentem atraídos pelo mesmo sexo. Tentativa de interferência de disfarçados fundamentos religiosos (infundados cientificamente) na atividade estatal foi o recente e não aprovado Projeto de Lei Estadual nº 717/2003, que, encaminhado à AERJ, previa a criação, pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, de um programa de auxílio às pessoas que, “voluntariamente, optarem pela mudança da homossexualidade para a heterossexualidade”! Iniciativas, como esta, desconhecem tanto o que a ciência diz sobre a homossexualidade, como o caráter laico secular da nossa estrutura jurídico-político-estatal.
Vislumbrando-se os avanços científicos em torno da sexualidade, o peso do preconceito, com base na orientação homossexual de milhões de cidadãos, e a atuação dos Três Poderes no Brasil (país laico e democrático), ainda se percebe, por exemplo, no âmbito do Poder Judiciário, a necessidade de alguns magistrados realizarem interpretações e aplicações mais justas, humanas e socialmente úteis das leis, capazes de reconhecer os direitos emergentes das uniões familiares homossexuais e de lhes possibilitar um mais amplo acesso à justiça. Na seara do Poder Executivo, verifica-se a urgência de políticas públicas conscientizadoras de que o respeito à pessoa deve passar, também, pelo respeito à sua afetividade. O Poder Legislativo, por seu turno, deve atuar através da criação de leis que ampliem a segurança em torno do exercício dos direitos fundamentais. No âmbito do Legislativo Federal, por exemplo, é claro o silêncio, que, até o momento, não contribuiu para afirmar a dignidade e o respeito efetivo a milhões de brasileiros vitimados pela homofobia. A omissão de considerável parte do Congresso Nacional, o atávico alarde das bancadas conservadoras desse (católicas e protestantes), o fundamento de algumas decisões judiciais e a inexistência de ações afirmativas eficazes, em torno do direito à livre expressão sexual, suscitam indagações inconcebíveis, em um Estado constituído como Democrático de Direito (art. 1 o , caput, CF/88): alguns legisladores podem excluir da apreciação jurídico-normativa considerável parcela da população, por preconceito ou por temor de se “comprometerem” socialmente? Conseguirá, a República Federativa do Brasil, "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (art. 3 o , I, CF/88), bem como "promover o bem de todos, sem preconceitos (...) e quaisquer outras formas de discriminação", a não ser com um engajamento sério dos representantes legítimos do Estado, para com a cidadania de todos os brasileiros, sem distinção? Se a cidadania e a dignidade da pessoa humana são fundamentos da República Brasileira (art. 1 o , I e III, CF), como admitir omissão estatal em matéria de direitos humanos fundamentais - a exemplo da livre orientação afetivo-sexual? Na ausência hodierna de uma lei federal, que regulamente, no Brasil, as uniões homossexuais e seus efeitos jurídicos, os magistrados podem dificultar ou negar, o acesso à justiça (seja ao processo, seja a uma decisão justa) aos homossexuais, demonstrando um tratamento diferenciado com base somente na orientação sexual das partes?
O estágio atual do conhecimento humano impossibilita juízos discriminatórios e omissões estatais, com base na orientação sexual das pessoas. Até o momento, a discriminação por omissão, percebida na esfera, por exemplo, do Poder Legislativo no âmbito federal (quanto aos direitos decorrentes da uniões homossexuais e da própria homossexualidade) assenta-se em concepções que jamais poderiam interferir na atividade de representantes legítimos da sociedade, pois são insustentáveis do ponto de vista científico. Os argumentos das bancadas já referidas, por exemplo, refletindo interpretações ou posicionamentos subjetivos e culturais delimitados, não devem se sustentar como óbice à aprovação de projetos que, por exemplo, equiparem, para fins diversos, os efeitos jurídicos das uniões homossexuais aos das relações heterossexuais. O que fundamenta tais projetos não é doutrina (ou questões de fé), mas a cidadania e a dignidade de pessoas e famílias excluídas do ordenamento positivo, por conta de um traço fundamental, que não mais pode ser alvo de discriminação: a orientação afetivo-sexual. Se essa, voltando-se para o mesmo sexo, fere dogmas ou a forma particular de interpretação bíblica desta e daquela igreja ou doutrina, o Estado não tem a ver com isso, devendo tratar e conceber, material ou substancialmente, os seus cidadãos, como "iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (art. 5 o , caput ). Caso contrário, abre mão da cientificidade, da defesa dos direitos humanos e afronta princípios constitucionais elementares, admitindo influências de ordem ideológico-religiosa. O silêncio estatal, além de perverso, é desvio de compromisso (para com os direitos humanos), por omissão, que rompe o pacto social erigido com a Lei Maior de 1988, pois deixa sem reconhecimento e regulação efetiva o atributo fundamental à livre afetividade. O acesso à justiça, para além do aparelho judiciário (do processo e da atividade jurisdicional), encontra na produção/omissão legislativa o maior obstáculo e a nascente impeditiva do exercício pleno da cidadania, por parte das chamadas minorias sexuais. Sem dúvida, o direito constitucional a uma ordem jurídico-social justa só se estenderá aos homossexuais (enquanto categoria hipossuficiente, frente ao preconceito e à intolerância), quando os membros do legislativo compreenderem a incoerência ético-profissional de atuarem motivados ou influenciados por preconceitos ou por dogmatismos engessados. O Projeto de Lei nº 5.252/01, por exemplo, do Deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), substitutivo do anterior 1.151/95, de autoria da então Deputada Marta Suplicy, caso aprovado, poderia beneficiar os que se relacionam com o mesmo sexo e teria o condão de retirar o Brasil do atraso em que se encontra, frente a tantos outros países, que já regulamentaram a matéria.
Em que pesem os preconceitos evidenciados nas decisões de muitos magistrados, a atividade jurisprudencial tem sido o instrumento de justiça mais eficiente, ainda que tênue, em matéria de direitos emergentes das uniões homossexuais e contra a discriminação com base na orientação sexual. Devido à proibição de os juízes se eximirem de julgar (de despachar ou sentenciar), alegando lacuna ou obscuridade na lei - art. 4 o , LICC e art. 126, caput , CPC -, e ante o princípio da inafastabilidade, segundo o qual todas as lesões ou ameaças a direitos devem ser submetidas à apreciação do Poder Judiciário - art. 5 o , XXXV, CF -, compreende-se a postura não omissiva desse. Atualizar o sistema jurídico e, em especial, o ordenamento, mediante a conformação da lei com o atual arranjo social, é a maior garantia que se pode auferir do labor jurisprudencial, pois, dessa conformação, depende a viabilização dos demais direitos.
Frente a um Estado laico, como o brasileiro, que se afirma Democrático de Direito (art. 1º, caput , CF/88), que consagra a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da República (art. 1º, incs. II e III, CF/88) e que eleva a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” a um dos seus objetivos fundamentais (art. 3º, inc. I, CF/88), permitir que sentimentos, ideologias doutrinário-religiosas ou posturas não validadas cientificamente interfiram nas atividades dos Três Poderes será decretar o desmoronamento da segurança jurídica. Definitivamente, a principal característica da contemporaneidade é a racionalização (prova científica), através do rompimento do Estado com a Religião, o que tem viabilizado uma maior efetivação da estabilidade democrática, da igualdade substancial e da solidariedade social, sem discriminação ou preconceito de qualquer natureza (art. 3°, III e IV, art. 5º, caput, CF ). Para desconsiderar as iniciativas discriminatórias, que tentam se infiltrar nas atividades estatais, é suficiente que os representantes e autoridades do Estado atuem nos limites legais do poder-dever do qual estão investidos, em prol da emancipação e do bem-estar individual e coletivo, considerando a dignidade dos cidadãos, como o ponto de partida e o fim primordial das suas ações, sem qualquer tipo de restrição. Só por meio do respeito à essência humana e aos bens fundamentais à existência, haverá vida social com paz e bem-estar pleno.