Dano moral e orientação afetiva
A livre orientação afetivo-sexual constitui um direito personalíssimo e fundamental dos cidadãos, amparado pela Constituição Federal de 1988, sustentado pelo princípio do respeito à dignidade humana (art. 1o, III, CF/88) e reforçado pelo objetivo da República Brasileira de construir uma sociedade livre, justa, solidária, isenta de preconceitos e de quaisquer formas de discriminação (art. 3o, I e IV, CF/88). Violações ou desrespeitos, capazes de atentar contra a garantia do exercício da afetividade-sexualidade, deitam reflexos nos âmbitos criminal e civil, a depender do caso concreto, ensejando, inclusive, o ressarcimento por dano moral.
Independente de se voltar para o mesmo, para ambos ou para o sexo oposto, o desejo manifestado sexual e afetivamente é protegido, pois integra traço inerente, essencial à personalidade de cada ser humano. Neste sentido, a Constituição reforça, assegurando que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5o, X, CF/88). Em direção clara, o Código Civil também estatui: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (art. 186). Assim, “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repara-lo” (art. 927, caput).
Como a heterossexualidade é tida como parâmetro normal/natural da sexualidade, são raros os casos de ofensa ao direito de se sentir atraído ou de amar o sexo oposto. Quando o desejo para o sexo idêntico é camuflado na bissexualidade, também são incomuns as turbações à intimidade, pela pressuposição heterossexual. Ao contrário, devido à ignorância científica e ao preconceito, a orientação afetiva homossexual ainda esbarra em reprovabilidades dos mais variados graus, sendo comuns atentados ou insinuações verbais, gestuais e, até mesmo, agressões físicas aos que não ocultam ou deixam refletir as suas homossexualidades.
Além de ramificações no âmbito penal, com a caracterização de crime contra a honra (injúria, em especial), tais atentados, insinuações e agressões à orientação afetivo-sexual podem ensejar a reparação de danos morais, desde que a vítima consiga provar em juízo o abalo à sua personalidade e ao bem de foro íntimo, que é a sexualidade ou afetividade. É certo que o quantum pecuniário indenizatório, variável em cada situação concreta, não é suficiente para, de per si, restaurar a dignidade ferida. Mas serve para reprimir os reflexos da discriminação (da homofobia, por exemplo), encaminhando os agressores a um repensar em torno do ato ilícito cometido.
As pessoas que se sintam lesadas, no direito fundamental de livre e responsável expressão da orientação sexual, não podem se omitir de denunciar perturbações que lhes firam a afetividade. Mesmo que imperfeita, a via judicial é a mais viável para ajustar conflitos oriundos de atentados à sexualidade. O pedido de indenização por danos morais é uma alternativa para sancionar o desrespeito a este espectro essencial da intimidade. Contra os atos que desrespeitam a dignidade humana, sob o ponto de vista afetivo, os operadores jurídicos ainda necessitam se despir de muitos preconceitos infundados, para que inteira justiça seja feita em meio às trevas da ignorância social e científica. O compromisso, entretanto, de transformar a realidade positivamente, desfazendo as complexas teias das discriminações sexuais, é de todos os cidadãos conscientes. Somente respeitando as pessoas, a partir das suas essências ou traços personalíssimos, é que seremos capazes de efetivar o principal paradigma deste milênio: o da solidariedade. Mais um desafio posto!

Enézio de Deus, advogado, escritor, membro do IBDFAM e pós-graduando em Direito Público.
eneziosilva@zipmail.com.br

- enviado por Marccelus @ 10:38 PM
 
Para quem legislam, os nossos Legisladores?

por Enézio de Deus

A via atualmente mais eficaz para o reconhecimento dos direitos dos homossexuais, no Brasil, tem sido a judicial, mesmo diante do conservadorismo de parte considerável da magistratura, do Poder Judiciário. Se, por um lado, preocupa o silêncio do Poder Executivo e a sua falta de coragem para com a efetivação de políticas público-governamentais de combate ao preconceito com base na orientação sexual dos cidadãos, mais assustador, ainda, é o descompromisso do Poder Legislativo - no âmbito federal - para com as chamadas minorias sexuais.

A urgência de os magistrados realizarem uma interpretação justa, humana e socialmente útil das leis, capaz de reconhecer os direitos emergentes das uniões entre homossexuais e de lhes possibilitar o acesso à justiça, compreende-se e justifica-se, dentre outras razões, pela omissão do Poder Legislativo e, em espacial, do Congresso Nacional, que, até o momento, não contribuiu para afirmar a dignidade e o respeito efetivo a milhões de cidadãos brasileiros vitimados pelo preconceito e, outrossim, pela homofobia (sentimento de aversão à orientação homoessencial, que se constata socialmente).

O estágio atual do conhecimento humano impossibilita juízos discriminatórios e omissões estatais, com base na orientação sexual das pessoas. No Brasil, país marcado pela exclusão social, todos sabem da necessidade de o Poder Legislativo aprovar Projetos de Lei referentes às questões sócio-econômicas de amplitude relevante (distribuição de renda, por exemplo), visando a atenuar "a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3 o , III, CF). Mas o fundamento da atuação legislativa, para com essas problemáticas que demandam atuação especial (concentração da riqueza e exclusão social) não pode servir de pretexto, para segregar, do amparo legal, situações diversas que marginalizam cidadãos idênticos, em dignidade e em direitos, a todos os outros - como os homossexuais.

Até o momento, a discriminação por omissão, percebida na esfera do Congresso Nacional (quando aos direitos decorrentes das uniões homossexuais e da própria homossexualidade) assenta-se em concepções que jamais poderiam interferir na atividade de representantes legítimos da sociedade, pois são insustentáveis do ponto de vista científico. Os argumentos das citadas bancadas católicas e evangélicas, por exemplo, refletindo interpretações ou posicionamentos ideológicos, doutrinários, subjetivos e culturais delimitados, não devem se sustentar como óbice à aprovação de projetos que, por exemplo, equiparem, para fins diversos, os efeitos jurídicos das uniões homossexuais aos das relações heterossexuais. O que fundamenta tais projetos não são doutrinas (ou questões de fé), mas a cidadania e a dignidade de pessoas e de famílias excluídas do ordenamento positivo, por conta de um traço fundamental, que não mais pode ser alvo de discriminação: a orientação afetivo-sexual. Se essa, voltando-se para o mesmo sexo, fere dogmas ou a forma particular de interpretação bíblica desta e daquela igreja ou doutrina, o Estado não tem a ver com isso, devendo tratar e conceber os seus cidadãos, como "iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (art. 5 o , caput ). Caso contrário, abre mão da racionalidade (prova científica) e afronta princípios constitucionais elementares, admitindo influências de ordem normativo-ideológico-religiosa. O silêncio estatal, além de perverso, é desvio de compromisso (para com os direitos humanos), por omissão, que rompe o pacto social erigido com a Lei Maior de 1988, pois deixa sem reconhecimento e regulação efetiva o atributo fundamental à livre afetividade (e, pois, à constituição familiar e ao exercício da maternidade/paternidade) de milhões de homossexuais brasileiros. Como afirma o Prof. Dr. Paulo Bezerra, na obra “Acesso á Justiça” (Ed. Renovar), sendo “possível produzir leis direcionadas a beneficiar alguns poucos, por que não fazê-las para beneficiar a maioria? Se essa possibilidade se dá ao legislador, então que se produzam leis mais justas".

O acesso à justiça, para além do aparelho judiciário (do processo e da atividade jurisdicional) encontra na produção/omissão legislativa o maior obstáculo e a nascente impeditiva do exercício pleno da cidadania, por parte das chamadas minorias sexuais. Sem dúvida, o direito constitucional a uma ordem jurídico-social justa só se estenderá aos homossexuais (enquanto categoria hipossuficiente, frente ao preconceito e à intolerância), quando os membros do legislativo compreenderem a incoerência ético-profissional de atuarem motivados ou influenciados por preconceitos ou por dogmatismos engessados. Realmente, o dever de quem legisla ou assume função no Poder Legislativo é produzir leis para o devido amparo a todos os cidadãos, sem discriminações injustificadas. Afinal, podemos nos questionar o que poderá ocorrer, no Brasil, com a crescente fragmentação do Congresso em bancadas e com o crescimento dos movimentos pentecostais e fundamentalistas... Os subgrupos se unem para legislar para “os seus”... E os demais cidadãos, que são “iguais perante a lei” em direitos e obrigações, onde ficam? Certamente, no lugar onde se encontram os homossexuais frente ao Estado: bem vulneráveis e desamparados, como se não existissem! Então, é válida outra indagação, parafraseando o poeta: “que país é este?”

É lamentável perceber que nenhum dos Projetos - verdadeiras ações de cunho reparatório-afirmativo -, por ora existentes no Congresso Nacional, que poderiam beneficiar os homossexuais, foi aprovado e, pois, transformado em lei. A deputada Iara Bernardi (PT-SP), autora dos Projetos de Lei ns. 5/03 e 9/03 - que visam, respectivamente, a incluir, no Código Penal, a punição por discriminação ou preconceito de orientação sexual e, na lei de Execuções Penais, a permissão de visitas íntimas a presos homossexuais - confirma, por exemplo, que a Câmara se omite em relação à violência contra homossexuais no Brasil. Como ela mesma afirma, “precisamos de legislação específica de criminalização, de orientação, nas escolas, para as crianças. A omissão desta Casa leva o Poder Judiciário a (...) reconhecer ações que o Congresso Nacional deveria estar debatendo e transformando em lei". Há outros projetos relevantíssimos, como ode número 287/03 (da Deputada Laura Carneiro, PFL-R, que criminaliza a rejeição de doadores de sangue, por serem homossexuais) o de nº. 32/03 (da Deputada Maria do Rosário, PT-RS, que proíbe a diferenciação salarial, por motivo de orientação sexual); o de nº. 2252/96 (da então Deputada Marta Suplicy, PT-SP, que tipifica como crime a discriminação em entradas de elevadores e prédios, em razão da orientação sexual) e o de nº. 379/03 (da Deputada Laura Carneiro, PFL-RJ, que institui o dia 28 de junho como Nacional do Orgulho Gay e da Consciência Homossexual).


Vale, entretanto, uma ressalva específica sobre os projetos de nºs. 1.151/95 (de autoria da então deputada Marta Suplicy, PT-SP, de relatoria atual do Deputado Roberto Jefferson, PTB-RJ) e 5.252/01 (desse mesmo deputado, que cria e disciplina o Pacto de Solidariedade). O primeiro, Projeto 1.151/95, que disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências, não propõe status de casamento ao contrato de Parceria Civil Registrada; não assegura o uso do sobrenome do outro; impede a mudança do estado civil, durante a vigência do liame contratual e veda a adoção, tutela ou guarda de crianças em conjunto (mesmo que filhos de um dos parceiros). Em que pesem as fundamentações críticas sobre essas limitações, a transformação do substitutivo do projeto em lei federal significaria um avanço significativo, beneficiando, indiretamente, os casais homossexuais, que registrassem suas uniões. O texto original fora adaptado para haver maiores chances de aprovação - como a troca da expressão "união civil", para a "parceria civil", a fim de essa não ser confundida com o instituto da união estável (já que essa, para os legalistas, só se aplica à relação de pessoas de sexo diverso). Desde 10 de dezembro de 1995, quando o substitutivo do Deputado Roberto Jefferson foi aprovado, a votação em plenário vem sendo adiada nos trâmites políticos federais - até o momento, devido, dentre outros fatores, às pressões das bancadas religiosas. É de se questionar em até que ponto a influência preconceituosa de tais bancadas impede a votação, ou tal óbice é fruto, na verdade, da falta de compromisso efetivo e de vontade política de grande parte dos parlamentares, para com a situação de desamparo legal dos homossexuais - muitos dos quais os elegera, em contrapartida, esperando uma atuação legiferante isonômico-cidadã, ou seja, para todos, sem distinção. É necessário, pois, que os atraídos afetivamente pelo mesmo sexo escolham melhor os seus representantes políticos, porque, sem que seja vencida tal realidade discriminatória, os homossexuais continuarão a ver negligenciados direitos e garantias constitucionais fundamentais, em virtude de preconceito intolerante, além de correrem o risco de a homofobia se intensificar, partindo das próprias estruturas estatais - das chamadas "casas da democracia", para os outros níveis de poder. Com efeito, estas bases não podem se manter, pois tal violência ao princípio isonômico compromete, ao mesmo tempo, a dignidade humana e a própria legitimidade democrática do ordenamento. Por isso, é evidente e legítima “a possibilidade de se cobrar do legislador que regule as situações que a jurisprudência consolida”, como bem aponta a Des. Maria Berenice Dias.

Elegendo-se um legislativo comprometido com os princípios constitucionais e com a efetividade dos direitos humanos, ele, como produto do Direito, pela função que lhe cabe constitucionalmente, “estando em frente em matéria de visão do justo, será o veículo de justiça mais efetivo e eficiente”, como confirma o já citado Prof. Paulo Berezza.

O Projeto 5.252/01, do Deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), surgiu, como ele próprio afirma, "a partir das discussões promovidas sobre o Projeto Lei n. 1151, de 1995, de autoria da Deputada Marta Suplicy". Além, pois, da relatoria deste já mencionado projeto (que tramita há oito anos no Congresso!), o Deputado Roberto Jefferson elaborou o de no. 5252/01, atenuando o conteúdo e suprimindo expressões que pudessem suscitar preconceitos infundados. O resultado, se a proposta fosse aprovada seria, praticamente, o mesmo e, sob o prisma social e jurídico, contribuiria muito para o avanço no Brasil, na esteira do reconhecimento legal de uniões que ora estão desamparadas pelo Estado, sob o prisma do Direito Positivo Pátrio - como a união homossexual. Assegura, tal projeto, "a duas pessoas, o estabelecimento do pacto de solidariedade, visando à proteção dos direitos à propriedade, à sucessão e aos demais direitos" (art. 1 o ) nele regulados. Também, constitui-se "mediante registro em livro próprio, nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais" (art. 2 o ), vedando "quaisquer disposições sobre adoção, tutela ou guarda de crianças ou adolescentes em conjunto, mesmo que seja filho de um dos pactuantes" (art. 3 o , § 2 o ). A diferença mais relevante, com relação ao Projeto 1.151/95, reside, ainda segundo Jefferson, em que “a proposta busca retirar, totalmente, de discussão, a questão da sexualidade, abolindo a expressão 'pessoas de mesmo sexo', que dava, à proposta anterior, o enfoque da proteção das relações homossexuais a que se constitui o maior obstáculo para sua aprovação, sem, entretanto, impedir que estas pessoas, busquem a proteção no texto atual”.

Em que pesem os preconceitos evidenciados nas decisões de muitos magistrados, a atividade jurisprudencial tem sido o instrumento de justiça mais eficiente, ainda que tênue, em matéria de direitos emergentes das uniões homossexuais e contra a discriminação com base na orientação sexual. Devido à proibição de os juízes se eximirem de julgar (de despachar ou sentenciar), alegando lacuna ou obscuridade na lei - art. 4 o , LICC e art. 126, caput , CPC -, e ante o princípio da inafastabilidade, segundo o qual todos as lesões ou ameaças a direitos devem ser submetidos à apreciação do Poder Judiciário - art. 5 o , XXXV, CF -, compreende-se a postura não omissiva desse (ao contrário da atuação de muitos membros do Congresso Nacional). Mas a discriminação também está presente nas estruturas do Poder Judiciário. De fato, "a lei não é - nem deve ser - apenas exortação. Se perguntado, qualquer juiz nega que a declaração de direitos e garantias fundamentais seja apenas uma carta de intenções. Mas, na prática, há (e seu nome é legião...) aqueles dispostos a negar efetivação a tais garantias" – como reforça Paulo Bezerra.

O Direito Constitucional de acesso à justiça, bem mais amplo do que o simples aceso ao Poder Judiciário, através do exercício do direito de ação, não será garantido aos homossexuais, enquanto esses não tiverem, outrossim, alcance a um processo justo, que viabilize a aplicação mais sintonizada possível da legislação infraconstitucional com a Constituição Federal, com a realidade fática hodierna e com as suas mutações. Atualizar o sistema jurídico e, em especial, o ordenamento, mediante a conformação da lei com o justo arranjo social é a maior garantia que se pode auferir do labor jurisprudencial, pois dessa conformação depende a viabilização dos demais direitos. Para tanto, o juiz deve se soltar das amarras. Há de recuperar a capacidade de indignação, diante da exclusão social de milhões de cidadãos, diante do preconceito, sob suas diversas matizes.

No que tange à adoção de menores por pares homossexuais, esperar a regulação normativa deste direito subjetivo por ora, das pessoas que convivem em verdadeiras uniões sólidas afetivas, através do Congresso Nacional, significa continuar vendo excluídas crianças e adolescentes de ambientes familiares estáveis e, em particular, dos direitos decorrentes de uma filiação bi-parental (mais plena) e, pois, de uma convivência mais diversa (com dois pais ou duas mães), que, sem dúvida, vêm-lhes ao melhor interesse. Se matérias menos polêmicas - por conta do tempo em que já são debatidas - não foram objetos de aprovação legislativa, mediante promulgação de lei federal, o deferimento do pedido de adoção a casais homossexuais verificar-se-á, primeiro, no âmbito judicial, pois já há abertura e antecedentes suficientes para tanto. Independente, com efeito, de possuírem uma visão dogmático-positivista ou crítico-transformadora, os magistrados não estão presos ao ordenamento literal positivo (enquanto fundamento imediato das suas decisões), pois esse deve ser interpretado, frente às possibilidades dentro do sistema jurídico, com vistas à melhor adequação social ao caso concreto. Pelo primado do realismo jurídico, quando a legislação está em descompasso com a realidade social, deve o juiz interpretá-la de forma a conformá-la com os fatos, dados inegáveis.

Diante da ultrapassada e inconcebível omissão do Poder Legislativo Federal, aberto está o caminho da criação jurisprudencial que, inevitavelmente e de modo gradual, tem ampliado o direito constitucional de acesso a uma ordem jurídica justa, igualitária e, socialmente, útil aos homossexuais que, solteiros ou em convivência afetiva estável, procuram o Poder Judiciário, para que o Estado lhes "diga" o direito. Como esse direito não precisa estar literalmente previsto na norma escrita, a analogia (aplicação de leis semelhantes que regem casos parecidos com os sub judice ) pode conduzir a uma fundamentação racional e equânime, capaz de efetivar direitos e consagrar diversas garantias relevantes a uma vida digna, como a colocação, por exemplo, de crianças e adolescentes, em seios de famílias homoafetivas bi-parentais substitutas, através do instituto de adoção – defesa principal do meu livro sobre o tema, publicado pela Editora Juruá.

Para fim de texto e início de ações concretas, é preciso que os homossexuais e os cidadãos comprometidos com uma ordem social justa reflitam quais membros dos Legislativos – municipal, estadual e federal – estão elegendo, para que a semi-aberta ou fechada porta do reconhecimento dos seus direitos não continue segregando e gerando injustiças inconcebíveis... Esperar benefícios somente do Judiciário e do Executivo é postura míope, que compromete o surgimento de leis mais condizentes com o atual estágio da humanidade. Contra a intolerância ou o medo omissivo, que permeia muitas “casas da democracia”, basta a verdade inexorável de que é para o povo, isto é, para todos, indistintamente e independente de qualquer natureza, que os legisladores tem o dever de legislar. No dia que assim se orientar a produção legislativa, haverá mais bem-estar e justiça social, em todas as esferas...

Sobre o autor:

Enézio de Deus é membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM -, Pós-graduando em Direito Público, docente, compositor e autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, Ed. Juruá.

eneziosilva@zipmail.com.br


- enviado por Marccelus @ 2:48 PM
 
Só há digniddae, com respeito à livre afetividade

Por Enézio de Deus

Sabiamente, Jung registrou: “O ser humano é um resultado peculiar de uma experiência da natureza e, especialmente quanto à vida erótica, tudo é possível”. De fato, é perceptível no cotidiano e comprovado por pesquisas – como o famoso relatório do Dr. Alfred Kinsey, norte-americano – que, entre a manifestação heterossexual e a homossexual (presumidamente puras), há uma infinidade de graus comportamentais na seara da sexualidade e da afetividade, que mesclam tendências, gostos pessoais, fantasias e, por exemplo, uma orientação sexual voltada para ambos os sexos em um mesmo sujeito. Existem os que só se satisfazem com o mesmo sexo; outros, com o oposto; os que, periodicamente, alternam relações com homens e com mulheres; há os sexualmente livres, mais trabalhados; os reprimidos, os recalcados em níveis diversos; os pervertidos de toda sorte, etc. Novidade? Nenhuma; mas ainda insistimos em problematizar demais algo tão belo e natural como a sexualidade. Desse modo, apesar dos incontestes avanços da Psicologia e do Direito nesse campo específico, maior parcela da humanidade reluta em não tratar os fenômenos ou assuntos da vida sexual com a clareza e a simplicidade que eles exigem, além de repudiar - violentando direitos fundamentais – os que não se rotulam nos padrões instituídos como “normais” e esperados sócio-culturalmente.

Seguramente, a causa para tanta estigmatização da sexualidade reside nos “pré-conceitos”, verdadeiros lixos sedimentados no inconsciente coletivo no decorrer da história universal. Ressalto, aqui, a influência marcante de maior parte das concepções judaico-cristãs no Mundo Ocidental, por demais vazias e tendenciosas a respeito da sexualidade. Isso me lembra, por exemplo, a máxima do “Crescei e multiplicai-vos” ou a pouco esclarecida história de Sodoma e Gomorra, tão prejudiciais àqueles que se sentem atraídos pelo mesmo sexo. Na realidade, o que nos falta é senso crítico, visão integrativa e menos hipocrisia. É por, infelizmente, vivermos na sociedade da persona (da máscara, da aparência), que insistiremos em tapar o sol dos nossos desejos com peneiras tão fúteis? Em outras palavras, até quando fingir com o discurso dos padrões sexuais institucionalizados, se os nossos mais íntimos desejos, fantasias infindáveis, mantêm-se geralmente distantes daqueles padrões e se o nosso semelhante, que tanto censura, é no fundo idêntico a nós? Bem ensinou Cristo: “Quem não tiver pecado atire a primeira pedra”. Transpondo para a presente análise, entendamos o “pecado” como aqueles ardentes pensamentos e ações que movimentam as labaredas da libido gostosamente, que, por hipocrisia, condenamos no outro, mas permeiam a nossa vivência diária na rua, no carro, no elevador, debaixo ou sobre os lençóis...

Certamente, se tivéssemos acesso a uma educação plena para a sexualidade, pautada somente em princípios éticos, ser-nos-ia mais fácil exercitá-la sem tantos medos e culpas (os verdadeiros pecados desnecessários), como, também, centrar-nos-íamos nas nossas questões, ao invés de nos deixarmos contaminar pela febre cultural do incômodo com a sexualidade e a vida íntima alheias. De fato, quem mais se incomoda com os prazeres e desprazeres sexuais dos outros é que, efetivamente, encontra-se mal resolvido, pelo fato de não ter conseguido ou nem tentando trabalhar as suas emoções efetivo-sexuais conflitantes, pendentes. Instituições religiosas, como a Igreja Católica, por exemplo, que se arvoram a falar de dignidade e direitos humanos, têm sido as que mais sutilmente depreciam a essência dos que não se encaixam no modelo da “sagrada família” – com par de sexos diferentes (presumidamente heterossexual) e indissolúvel. Como promover a paz, sem o devido respeito aos bens essenciais a uma vida digna?

Estando em posição de destaque entre tais bens, a livre afetividade representa natural extensão da essência desejante e, por tal razão, é tutelada, implícita ou explicitamente, por quase todos os ordenamentos jurídicos, tratados e convenções internacionais. Mesmo que a expressão “orientação sexual” não esteja mencionada, literalmente, em lei (como não consta na Constituição Brasileira de 1988), pouca interpretação ou hermenêutica é necessária, para se concluir que ela integra os chamados direitos fundamentais. Basta a inexorável verdade que, sem exercitá-la ou tolhido na movimentação do natural direcionamento dos seus desejos (sejam para o mesmo, para ambos ou para o oposto sexo), o ser humano resta fragmentado, violentado ou sobrevivendo até com dificuldade. Neste sentido, não há que se falar em respeito à dignidade humana, sem o devido e correspondente respeito à livre afetividade! Pensando em contribuir, jurídica e cientificamente, para a maior desvinculação da homossexualidade dos aspectos somente sexuais e genitais dessa orientação sexual, foi que eu tive a felicidade de cunhar, na língua portuguesa (através do devido registro e da publicação do meu livro pela Editora Juruá), o vocábulo homoessência e suas variantes - homoessencial, homoessencialidade -, na medida em que, sendo expressão da essência emocional-desejante de milhões de seres humanos e parte da dignidade desses (núcleo de proteção jurídica mais especial e essencial), a atração pelo mesmo sexo é tão afetivamente natural e verdadeira, quanto as demais aproximações que tem o amor como fundamento e tônica de sustentação.

É evidente a necessidade do auto-aprimoramento constante e de uma reflexão profunda a respeito dos paradigmas – a exemplo de alguns preceitos, dogmas religiosos ou posturas fundamentalistas –, que persistem no bloqueio ao lento processo de libertação da sexualidade humana. Até que essa seja efetivada, que sejamos mais honestos e corajosos para enxergar o que não queremos e para mobilizar forças rumo ao equilíbrio afetivo-sexual de todos, sem distinção, o que, sem dúvida, acarretará benefícios em outros âmbitos da vida. Se o nosso Estado é Democrático de Direito (art. 1º, CF/88) e se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária é um dos primordiais objetivos da República Federativa Brasileira (art. 3º, CF/88), não podemos abir mão do caráter laico das nossas instituições estatais e democráticas. Esta será a maior segurança dos que se sentem vitimados por preconceitos, que jamais poderiam partir de estruturas fundamentais, como o Poder Legislativo – muitas vezes, influenciado por bancadas, que não querem dar o “direito” a todos, mas somente aos que se submetem ou aderem aos seus preceitos. Por estas e outras constatações absurdas, é que podemos repetir a poética: “Que país é este?”...

Enézio de Deus é autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, Editora Juruá; membro do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família; bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); pós-graduando em Direito Público pela Universidade Salvador (UNIFACS); compositor. eneziosilva@zipmail.com.br


- enviado por Marccelus @ 2:46 PM



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